sexta-feira, junho 20, 2008

De cabeça para baixo: Rússia encanta, Brasil decepciona

Do portal Terra

Rob Hughes

Talvez o mundo tenha realmente virado de cabeça para baixo, entre a noite de quarta e a manhã de quinta-feira. Por volta da meia-noite, em Innsbruck, o desempenho da seleção russa de futebol, treinada por um holandês, estava sendo analisado na TV alemã por Gunter Netzer, um dos jogadores mais criativos que seu país já produziu.

"Das ist der perfekte Fussball", repetia Netzer sobre a fluidez, o movimento e os passes dos russos. Netzer acabara de assistir ao desempenho da seleção russa comandada em campo por Andrei Arshavin e do banco por Guus Hiddink, que derrotou a Suécia por dois a zero e garantiu vaga nas quartas-de-final da Eurocopa.

Não foi só uma vitória, mas uma exibição de versatilidade e improvisação por uma Rússia irreconhecível como a equipe destroçada em derrota por quatro a um diante da Espanha, uma semana atrás. O talento nasce ou se desenvolve com os jogadores, mas a licença para exibi-lo precisa vir do técnico.

Hiddink não só é um dos técnicos mais viajados do esporte como sempre busca e identifica jogadores com a coragem de expressar o talento que possuam. Isso não é problema no caso de seus compatriotas holandeses. Mas com os sul-coreanos e australianos que ele treinou nas Copas de 2002 e 2006, Hiddink teve de se esforçar para convencer as equipes de que podiam fazer melhor do que imaginavam.

O prêmio de Hiddink por levar a Rússia à próxima fase? Encarar, neste sábado, a Holanda, que muita gente vê como a melhor seleção do torneio. Poucos especialistas vêem grande chance de vitória russa, o que é exatamente como Guus prefere.

Mas antes de considerarmos o futuro, vale contrastar o clima de festa na concentração russa com o que vimos em Belo Horizonte, Brasil. Os 52 mil torcedores presentes ao Mineirão estavam vaiando o técnico da Seleção, o ex-meio-campista Dunga, em uma partida das Eliminatórias da Copa do Mundo contra a Argentina. E a ira dos torcedores era menos pela falta de gols do que pela falta de raça.

O Brasil não vem jogando bem desde que Felipe Scolari conquistou a Copa do Mundo com a Seleção, em 2002, e imediatamente se transferiu para Portugal. Felipão é um técnico capaz de reconhecer talentos, e de liberá-los. E há outros treinadores dessa escola - Slaven Bilic, da Croácia, e mesmo o velho e resmungão Luis Aragonés, da Espanha.

Até Fatih Terim, da Turquia, caso ele consiga manter seus jogadores mais concentrados no talento do que na desordem. O fato é que algumas das seleções presentes estão transformando esta edição da Eurocopa em festa dos atacantes, ainda que Itália e Alemanha possam apagar esse fogo antes que o torneio se encerre.

De qualquer forma, é novidade ver a Europa se divertindo com um futebol aventuroso e Brasil e Argentina jogando na retranca. Dunga não se desculpa por entediar os torcedores, enquanto tenta realizar seu objetivo de criar uma Seleção Brasileira mais "eficiente" do que as do passado. Os torcedores não gostam, e não vai demorar para que Dunga seja demitido e substituído por técnico que aprecie mais a liberdade.

Enquanto isso, o sol brilha sobre as equipes comandadas por Hiddink e Scolari. Seria possível dizer que o bom senso dita que, quando há um jogador com a intuição de Arshavin ou o talento de Cristiano Ronaldo, o certo é construir o time em torno dele.

Hiddink diz que "para começar, essa foi uma vitória enorme para os jovens jogadores. Veja de onde viemos - éramos os azarões. Agora estamos nas quartas-de-final. O próximo passo será dado amanhã, mas posso dizer que estou muito feliz por trabalhar com esses jogadores russos".

Ele exige muito deles - mais do que a dedicação que os russos sempre exibiram e mais que o futebol estereotipado e baseado em força física da velha União Soviética. "Quando você tem um jogador como Arshavin", diz Hiddink, "tem alguém capaz de decidir muito rápido as situações de perigo. Ele joga bem pela direita e pela esquerda. É um jogador muito inteligente".

Apesar da inteligência, Arshavin ocasionalmente permite que a irritação o domine, e aos 27 anos continua jogando no Zenit, de São Petersburgo, que ele conduziu à vitória na Copa da Uefa em maio. Ou seja, Hiddink não criou o talento; o Zenit já o havia demonstrado, florescente, em uma temporada que viu vitórias retumbantes sobre equipes como o Bayern de Munique, o Bayer Leverkusen e o Glasgow Rangers.

O que Hiddink faz, e o que ele fez com os sul-coreanos, australianos e em sua passagem pela seleção holandesa, é transmitir conhecimento. Ele serve como figura paterna, professor, sargento. Exige aplicação total, mas não se ilude imaginando que faria melhor se estivesse em campo no lugar de seus jogadores.

Quem acompanhou as imagens posteriores ao apito final no jogo da Rússia na quarta-feira com certeza percebeu a afeição, e também o respeito, que vêm se desenvolvendo entre o técnico e sua equipe. Arshavin pode ser craque, mas não joga sozinho, e sem o crescimento na confiança de Sergei Semak, Konstantin Zyryanov, Yuri Zhirkov e do atacante loiro Roman Pavlyuchenko, de Moscou, jogo após jogo, os resultados não surgiriam.

Para aqueles de nós que já viram Hiddink extrair o melhor de uma seleção anteriormente desconhecida como a da Coréia do Sul, cuja estrela é Park Ji Sung, o processo é familiar, mas agora o estamos testemunhando em tempo muito mais curto.

O fascínio de ver Hiddink trabalhando é a maneira pela qual ele demonstra tanto autonomia quanto respeito pela cultura em que está inserido. Eu estava com ele na noite em que se despediu da seleção da Coréia do Sul, depois de levá-la ao quarto lugar da Copa de 2002. Depois de uma cerveja ou três, ele tomou o microfone no banquete oficial e imitou Frank Sinatra, cantando "My Way".

E o seu jeito de trabalhar também é lucrativo. O salário de Hiddink como técnico da Rússia é pago pelo bilionário Roman Abramovich - o mesmo homem que agora contratou Felipão como técnico de seu Chelsea. Já que o dinheiro compra conhecimento, alguém devia aconselhar Abramovich sobre como investir suas sobras de caixa e satisfazer sua necessidade de diversão: talvez o Brasil precise dele.

Tradução: Paulo Eduardo Migliacci ME

Herald Tribune